Encaminhei um condenado à morte a sua cela. Não seria nada incomum
para mim se não
fosse pelo fato deste homem ter sido há muito tempo meu melhor amigo. Infelizmente, nossas
escolhas nos trouxeram a este encontro. Eu, soldado da URA (União Resistente Americana)
e ele, espião da
oposição,
viemos de mesmo berço,
mas tivemos destinos diferentes. Por nossa antiga amizade, o mínimo que posso fazer é atender seu último pedido,
transcrever o texto que compôs
enquanto preso.
"Ah!
Aquele meu tempo de criança
Em um
mundo cheio de esperança
Que
se acabou em meio à
matança
Nunca me esquecerei daquele dia de outono, quando tudo
começou. Estava na escola,
em meio à
aula, quando a professora, minha tia, caiu no chão tendo uma convulsão hemorrágica. O socorro não chegou mesmo com os
gritos e choros das crianças,
pois todas as pessoas com mais de trinta e três anos, assim como
minha tia, estavam morrendo e os demais tentavam socorrê-las ou simplesmente
choravam desesperados. Ao sairmos da sala, eu e Longino, meu melhor amigo,
vimos adultos morrendo e inevitavelmente nos lembramos de nossos pais.
Peguei meu celular e liguei para minha mãe, ela e meu pai
estavam vivos, socorrendo os funcionários da loja. A mãe de meu amigo, que trabalhava nessa loja, estava viva,
mas seu pai não
atendia o celular, pois também sofreu
um ataque letal. Em março de
2015, cinco bilhões de
pessoas morreram da misteriosa doença. Nessa época, eu, Roque de Monte Piller, tinha sete anos e
morava em Taubaté,
minha cidade natal. Vivi lá até 2021, quando me mudei
para a recém-criada
capital da URA, Arcádia.
Mas, voltando ao início,
tudo começou
bem longe daqui, no Oriente Médio.
Por
um longo tempo a paz dominou
Tédio de Ares ao extremo
chegou
O
tempo de guerras começou!
O Irã, país da atual União dos Países Médios, sempre manteve
uma política
conservadora em relação a
seus costumes religiosos, assim também mantendo uma cultura antiocidental. Por isso, sempre
esteve em conflito com os Estados Unidos da América e seus aliados.
Havia certa cautela ocidental para que o Irã não
desenvolvesse armas nucleares, sem saber que havia algo maior a temer. Em algum
momento da primeira década
do século XXI, um retrovírus desconhecido na época, o Invitavirus
HDV-1, foi achado em forma cristalizada durante escavações para extração de petróleo.
Após
diversos estudos, as supostas vacina e cura foram desenvolvidas, tornando o vírus uma arma biológica conhecida como
Maldição
Persa. Em 2015, terroristas iranianos utilizaram esta arma em ataques simultâneos em três países: Estados Unidos da
América, Israel e Japão. Logo a doença saiu do controle e
gerou a pandemia. A vacina e a cura foram inúteis, pois a mutação genética
do vírus era incrivelmente rápida e o contágio, quase inevitável.
O HDV-1, quando se acopla a uma célula humana, libera seu
RNA, misturando-o ao material genético humano. Durante esse processo, parte dos genes se
altera e os telômeros,
que são ligados ao tempo de
vida biológica,
são encurtados. Assim, as
pessoas que já tem
estes genes curtos (ou seja, pessoas com aproximadamente trinta e três anos ou mais) tiveram
convulsões
hemorrágicas
e morreram em curtíssimo
prazo. O resto da população
humana, além de
alguns animais, tiveram suas vidas encurtadas drasticamente. A doença também é hereditária; portanto, filhos
de pessoas infectadas nascem com uma expectativa de vida menor.
A cura era algo quase impossível, uma vez que a
variedade genética
do vírus se tornou colossal.
A causa de toda guerra atual é
exatamente uma solução
para evitar a extinção
humana. As uniões
continentais formadas pela ONU e outros países sem união (como a China) disputam uma corrida pela salvação. A URA obteve os
primeiros resultados, frutos dos esforços intensivos de exímios geneticistas, os irmãos Makifer, Epimetheu e
Prometheu. Eles demonstraram eficiência ao gerar resultados em pouco tempo, trazendo à vida as primeiras
pessoas não-infectadas,
através de processos artificiais
e isolamento total.
Foram gerados cinco bebês não-infectados, nascidos
em respectiva ordem: Abel, Davi, Ester, Verônica e Onã, os Imunes. Esta ‘imunidade’ era parcial, pois o contato com o vírus poderia gerar até mesmo morte instantânea a estas crianças. Neste período, houve um
desentendimento de ideias entre os irmãos cientistas. Prometheu, o mais novo, queria que uma
cura geral fosse feita com os genes das crianças, mas Epimetheu
conseguiu convencer o resto da equipe de pesquisa e o governo a fazer um
repovoamento mundial começando
pelos Imunes.
Prometheu saiu do núcleo de pesquisas e levou a situação a público, recrutando pessoas
que discordavam da situação
para formar uma oposição. Em
resposta, Epimetheu, com seu novo cargo político, alistou todos que concordassem lutar pelos propósitos governamentais em
troca do recém-criado
remédio para melhorar a longevidade.
Na verdade, este remédio
tinha inicialmente o propósito
de evitar que os Imunes se infectassem, prendendo os vírus no organismo dos
indivíduos infectados. O
prolongamento de aproximadamente seis anos na expectativa de vida era
praticamente um ‘efeito
colateral’.
Também fora iniciada aí a construção das grandes paredes
que cercam Arcádia.
Para
viver mais, entrei na batalha
Primeira
vez passei a muralha
Por
eles, Imunes, eu lá
estava
E
silenciosamente batalhava
Meses antes de ir para a capital, fui convidado
pessoalmente a entrar para a oposição. Não me
decidi quanto a isto naquela hora, então conversei com Longino, descobrindo que ele pretendia
se alistar no exercito. Você
acredita mesmo nesse papo do governo?! É só um
meio de obter soldados de forma fácil, não é a solução, escolher isso é puro egoísmo! Ele não me escutou, estava
decidido a se alistar quando completasse quinze anos. Pois bem, agora estou
decidido, entrarei para a oposição!
Com estas palavras, encerrou-se uma longa amizade.
O governo, sem saber de meu trabalho na oposição, ofereceu à minha família, provavelmente por
nosso status econômico, moradia em Arcádia, com direito a
alimentação e
remédios gratuitos. Até pensei em recusar a
entrada na cidade que fora construída em quatro anos apenas para abrigar os Imunes, mas
aceitei e me tornei um espião
infiltrado da oposição.
Foram onze anos observando os Imunes e enviando relatórios secretos.
Durante uma madrugada fria, fui surpreendido por um
invasor em minha casa, briguei com ele até que um segundo invasor apareceu parando a luta. Minha
surpresa-mor foi ver que meu oponente era Abel, um dos Imunes, e a outro pessoa
era Ísis, minha sobrinha! Ambos
vieram à
minha casa em meio ao toque de recolher para saber mais quanto aos Imunes.
Contei-lhes a história
quase por inteira e presenciei algo completamente inesperado, um Imune declarou
que entraria para oposição!
Logo apareceram soldados em minha casa à procura deles. Tomei uma decisão rápida, dei meu pacote
emergencial e tive de servir como bode expiatório para fuga dos
jovens. Fui preso, julgado e sentenciado à morte.
Refleti
sobre minha vida inteira
Segunda
vez passei a barreira
Eu
nasci na paz, mas cresci na guerra
Minha
vida agora se encerra”