sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pilatus (conto/pré-roteiro)

DESAFIO A MENINA QUE ROUBAVA MELODIAS • GRUPO CANETA TINTEIRO


Use a música deste vídeo como referência nos tempos:
https://youtu.be/V1CUDKPm4x0
Obs: tem sons bem baixos, aconselho escutar com fones.


00:00 - No meio do mar vemos muitas ondas, pequenas, porém em grande número. Percebe-se pelo som que estão batendo em algo.
00:14 - Era o casco do barco de um barco, de madeira bem rústica artesanal.
00:21 - Mais acima, no convés, há pessoas, famílias conversando e se alimentando. Todos parecem desanimados, famintos e alguns até doentes. Um homem entalha um risco cruzado entre outros quatro, haviam muitos mais desses símbolos no mesmo local, dando a entender o longo tempo que eles estão no navio. Dentre as famílias, uma se destaca com um garoto muito agitado comparado com as demais pessoas. A mãe dele está lhe dando comida, alguns grãos, mas o menino não para quieto.
01:02 - Passando ao comando do barco, o capitão está em seu posto no timão e vários homens estão à sua volta trabalhando. De forma bem séria, o chefe dá ordens a todos.
01:29 - Um garotinho animado chega no capitão e puxa seu sobretudo. Com um belo sorriso parece estar chamando o homem para brincar, mas acaba tomando uma resposta negativa apontando para voltar ao local onde estão as famílias.
01:48 - O garoto segue a ordem e volta desapontado, vai com passos vagarosos e tristonhos. Então sua mãe o abraça e pega no colo.
02:12 - As ondas começam a ficar fortes e o céu fica escuro, começa a chover e todos buscam abrigo às pressas.
02:32 - A chuva se intensifica e uma grande tempestade começa! É tão forte que parece que o barco não vai aguentar, no entanto o capitão enfrenta a chuva e mantém seu posto no timão.
02:49 - A tempestade diminui e vai parando aos poucos.
03:01 - Raios de sol vão surgindo entre as nuvens e iluminando aqueles que se mantiveram trabalhando no convés.
03:11 - Então, olhando para o horizonte eles veem terra à vista! O capitão grita as boas novas e todos comemoram! Logo começam os preparativos para atracar o barco.
03:22 - As pessoas descem do barco muito felizes pela terra nova.
03:33 - A construção de uma vila começa e segue bem acelerada.
03:43 - O garoto agitado do barco corre levando consigo ferramentas dos trabalhadores que o perseguem.
03:49 - A vila já está bem construída e as plantações começam.
03:58 - O travesso volta com suas brincadeiras espalhando sementes no meio de uma horta com um grande grupo de pássaros o seguindo.
04:04 - O capitão do barco, agora líder daquele povo, encontra o garoto e lhe dá uma bela bronca. Mais tarde, em casa, sua mãe também lhe dá palmadas em seu bumbum.
04:22 - Sendo colocado nos eixos, o menino cresce aprendendo a colaborar com as pessoas da vila.
04:34 - Ele aprende a lutar e liderar pessoas.
04:45 - Seu pai, o já velho, passa a liderança da vila ao grande homem que o garoto traquina se tornou.
04:58 - Nosso protagonista se casa e constitui uma família, tudo parece tranquilo...
05:10 - Até que um grande dragão vermelho sobrevoa a vila e espalha seu fogo. A pessoas entram em desespero, o fogo consome parte da vila muito rápido.
05:39 - Em uma reunião, as pessoas discutem o ocorrido e tomam a decisão de caçar o dragão.
06:09 - Um árduo treinamento de homens é feito e armas e armaduras são forjadas.
06:26 - Os homens marcham para a montanha rumo ao combate, passam por diversas dificuldades no percurso, como ataques de animais e lugares estreitos e altos.
06:54 - Finalmente eles encontram o dragão!
06:57 - O combate começa, todos os homens atacam juntos, mas o dragão só recua, parece estar na defensiva. Até que um dos homens encontra um ninho e tenta avançar nele.
07:09 - Então o dragão se enfurece e começa a atacar, seus golpes são muito fortes.
07:16 - Uma chacina acontece, muitos homens são mortos com poucos golpes do dragão.
07:33 - Logo sobra apenas o líder da vila de pé e o dragão vai em sua direção.
07:39 - O homem é muito ágil e consegue sair vivo desviando de boa parte dos golpes e se aproximando do dragão.
07:47 - Ele, já muito machucado e cansado, consegue fincar a espada no peito do dragão, que cai no chão.
07:54 - Olhando em volta vê todos seus amigos mortos. Lembra que todos tem uma família para voltar, assim como ele. Então caí de joelhos e chora.
08:10 - Do ninho do dragão saem pequenos dragões azuis que se debruçam aos pés do dragão caído e ele se transforma em uma linda mulher* de vestido branco.
08:46 - Ela ergue os braços e brilhos caem por todo o local. Os homens vão se levantando, felizes por estarem vivos e curados.
09:09 - Todos marcham de volta para a vila e reencontram suas famílias.
09:31 - O dragão, agora azul, passa sobrevoando a vila de forma amigável e as pessoas o saúdam de longe, parecem gostar dele.
09:45 - Então o dragão volta para as montanhas terminando o conto de Pilatus, a montanha dos dragões.






*Obs: Não é a Julia Roberts e até eu estou confuso com essa cena.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Você é o culpado de tudo!

Talvez você, assim como eu, assistia Chaves nas tardes vazias depois de chegar da escola e almoçar. Se esse for o caso, com certeza deve ter assistido o episódio “Estatísticas”. Neste episódio, em certo momento, o professor Girafales tenta dar uma explicação sobre como as estatísticas funcionam e diz ao Quico: “Sabia que cada vez que o Chaves respira, morre uma pessoa na China?”. Obviamente apenas um exemplo bem exagerado… Ou talvez nem tanto.
Sabe aquela famosa frase “O bater de asas de uma simples borboleta pode causar um tufão do outro lado do mundo”? Ela representa a Teoria do Caos, onde a menor mudança em um elemento de um sistema pode gerar grandes consequências a longo prazo. Considerando nosso mundo como o sistema, a consequência de algo pequeno como a respiração do Chaves pode sim gerar a morte de chineses em uma longa cadeia de acontecimentos.
Nós podemos ir além e pensar em algo ainda maior: cada mínimo detalhe do universo gera infinitas consequências. Sabe o que isso significa? Que você tem certo grau de culpa em tudo o que acontece no universo. Você está achando essa viagem mental pesada demais? Calma, calma… Dá para ficar pior.
Se você tem um "diploma de conhecimento científico intenético", talvez conheça o experimento imaginário do “gato de Shöddinger”, certo? Vamos abordar menos o desejo de ter um gato zombie e mais as conclusões do experimento que dizem que o estado de uma partícula só é definido quando passa a ser observada. Sabendo disso, você como bom observador está definindo todo o estado de tudo a sua volta.
Acha que eu peguei pesado nessa dedução? Desculpa te informar, mas René Descartes concorda comigo, mesmo sem ter tido a chance de conhecer a física quântica. Afinal ele é o autor da frase “Penso, logo existo”. Para chegar nesta conclusão, nosso amigo René utilizou de suas “Meditações Metafísicas”, considerando tudo que possa ser duvidável como inexistente, e chegou a conclusão que a única coisa que podemos comprovar existência é nossa própria consciência.
Sendo assim, se tudo que nos envolve depende de nós mesmos para existir, a culpa da existência de todo um universo só pode ser atribuída a uma consciência que o reconhece.

domingo, 1 de abril de 2018

Shift - Caso Particular

DESAFIO 20.000 PROMPTS SUBMARINOS • GRUPO CANETA TINTEIRO

Um dia comum, indo para trabalho.
Um dia em que nada parece que vai dar errado.
Um dia, em que um acidente mudou minha vida por completo.
Um dia em que o mundo virou no avesso.

Que mal estar, essa deve ser a pior ressaca da minha vida… Meu corpo está dormente, não consigo me mexer. Não consigo ver nada também, meus olhos estão vendados? Minha garganta está com um baita incômodo, acho que estou entubada, devo estar em um hospital.
Beleza, e como eu vim parar aqui? Vai memória, não falha agora, qual é a última coisa que me lembro… Eu estava de viagem, foi isso. Fui passar o final de semana na casa de meus pais e estava voltando de viagem para trabalhar no dia seguinte. Para economizar, resolvi pegar uma carona e rachar o valor da viagem, usei um aplicativo e encontrei um pessoal que faria o mesmo percurso que eu. Lembro que uma moça foi dirigindo e eu fui no banco do carona, depois eu devo ter adormecido. Então deve ter rolado um acidente enquanto eu dormia.
Preciso me comunicar com alguém, mas como vou fazer isso neste estado? Ouço passos, tento fazer barulho com a boca, estou acordada! A pessoa dos passos começou a correr para longe de mim, deve estar tentando avisando a enfermagem!
Não demorou, logo uma médica veio falar comigo:
— Bem vindo de volta! Você dormiu por quase uma semana, meu rapaz! Cuidamos bem de você nesse meio tempo, creio que terá uma recuperação rápida.
Rapaz? Talvez ele tenha feito uma confusão por meu corpo estar todo enfaixado. Ela continuou
— Não sei se você está ciente, mas sofreu um acidente de carro. Sua recuperação está sendo boa, agora que acordou, podemos dar seguimento a uma nova fase do tratamento. Isso quer dizer que logo iremos retirar o tubo de sua garganta e as faixas que cobrem seus olhos.
Assim como a médica disse, não demorou muito para retirarem o tubo de minha garganta. Foi uma sensação bem estranha, muita ânsia, apesar de eu não ter vomitado nada. Quando fui tentar falar, não consegui. Me explicaram que isso às vezes acontece e que eu deveria esperar que logo voltaria ao normal.
Depois disso, retiraram as faixas de meus olhos, o enfermeiro disse:
— Você está com algumas cicatrizes próximas aos olhos ainda, este acidente quase o cegou. Quer olhar no espelho agora? Talvez seja melhor deixar para depois.
Eu balancei a cabeça positivamente, afirmando querer ver. Me mostraram o espelho e realmente me arrependi, mas não por ver cicatrizes, mas sim por ver um rosto masculino no lugar do habitual! O que fizeram comigo? É uma pegadinha? Infelizmente, não conseguia falar ainda e comecei a me agitar espontaneamente por conta do que vi, então me seguraram e um enfermeiro injetou algo no meu acesso…
Abro os olhos e vejo uma moça ao meu lado, ela começa a fazer gestos com as mãos. Meu irmão é mudo, então conheço bem o que os gestos significam, são palavras em libras. Ela me diz “Tudo bem? Está mais calmo agora?”. Eu tento falar e, desta vez, as palavras saem de minha boca, mesmo que minha voz ainda esteja fraca:
— Estou bem, mas não calma. O que fizeram com meu rosto? - é bem estranho ver que minha voz também é masculina, apesar de lembrar um pouco a minha normal. Pensando bem, o rosto no espelho também lembrava um pouco os traços do meu.
Ela me diz que só deram os pontos para curar, o roxo veio da batida do carro, o resto está normal.
— Como normal? Eu sempre fui mulher, o rosto no espelho era de um homem!
Tenho como resposta “Meu irmão, este sempre foi o seu rosto, você sempre foi homem”. Irmão? Mas eu não tenho irmã, apenas irmão! Será que ela é alguém de igreja e veio me visitar? Não, não faz sentido, só tem eu e ela no quarto, é minha acompanhante. Nada faz sentido, parece que nós dois trocamos de sexo… Será que isso é algum trauma cerebral que desenvolvi neste acidente?
Neste momento uma mulher loira entra no quarto, ela é muito bonita e seus olhos se destacam muito, afinal não é comum ver um olho verde e outro azul.
— Olá, Cláudio. Eu sei que talvez você esteja mais acostumado a ser chamado de Cláudia, e é exatamente isso que eu vim aqui lhe explicar. Vou pedir a sua irmã, por gentileza, nos deixar a sós por um momento. Não se preocupe, sou uma especialista no caso dele e apenas preciso explicar algumas coisas em particular. Depois entrarei em contato com a família, certo?”. Minha irmã de apenas deu um sinal de ok com as mãos e saiu do quarto.
— Cláudia, você se lembra da moça que lhe ofereceu a carona onde o acidente ocorreu, certo?
— Sim, eu lembro.
— Preciso te informar que ela faleceu ao te salvar. O carro não tinha airbag e, na batida, ela colocou o braço na frente do seu rosto, fazendo o acidente deixar de ser fatal para você. Neste momento, ela usou uma habilidade que poucos humanos tem, é algo bem complicado de se explicar… Imagine que existem duas dimensões, uma onde você é mulher e outra que você é homem. Não só você, o mundo inteiro é assim. Inclusive, até preconceitos e outras formas de discriminação são opostas entre estes mundos. Agora saiba que existem pessoas, como o caso desta moça, que conseguem transitar sua consciência entre os dois mundos. Foi o que ela fez quando te protegeu, porém, com a morte dela, este poder te afetou no lugar dela.
— Que viagem é essa… Sério, isso parece história de fantasia, ou ficção científica, apesar de parecer mais de terror para mim…
— Entendo o que você sente, porém não há nada que posso fazer por enquanto. Nunca vimos um caso como o seu antes.
— Vimos? Tem mais gente com você?
— Mais ou menos, não é bem como se eu fosse de uma organização ou algo do tipo. São apenas pessoas com algo em comum, e a moça que te salvou era uma de nós. De qualquer forma, dica com meu contato, precisamos de você e, acho, que você precisa de nós.
Depois de dizer isso ela saiu da sala. Logo meu irmão entrou de volta e perguntou se era algo grave, respondi:
— Não sei dizer, as coisas estão cada vez mais confusas. Só sei que é horrível ser um estranho para si mesmo. É assim que me sinto ao ver meu rosto, ouvir minha voz.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A Ascenção da Lady de Ferro

DESAFIO JIKAN TACHINU • GRUPO CANETA TINTEIRO

Atenção: A história a seguir foi escrita com base na animação Princesa Mononoke, logo aconselho fortemente que tenha assistido o filme para compreender os acontecimentos e personagens.


Mordo com força o pedaço de madeira envolto em um pano enquanto um a aprendiz de Finako, o curandeiro leproso, mexe em meus nervos e tendões do braço. Por mais que suas mãos sejam delicadas e todo o cuidado esteja sendo dado, é impossível colocar as mãos nesta grande ferida sem me gerar dor. Naquele dia em que me tornei a matadora de um deus, também perdi meu braço para a cabeça da loba, e por mais que não tenha morrido por completo, posso dizer que parte de mim se foi.
Winly, a aprendiz, diz para trazerem “a máquina” e logo aparecem dois dos meus artesãos leprosos trazendo um braço feito de metal e madeira junto com uma espécie de motor de combustão a pólvora bem pequeno ligado a ele. Ela pega a extremidade superior do braço com alguns fios metálicos e liga ao meu corpo, novamente, muita dor. Logo, o motor é ligado e ela me diz “tente mexer”. Com muito esforço, eu vou fechando os dedos (que são apenas 3, dois grandes e um polegar, é mais que o suficiente) bem lentamente até cerrar o punho. Tínhamos um sucesso ali.
Por sorte, esta tecnologia já estava sendo desenvolvida muito antes da caça ao deus, praticamente nos primórdios de Tataraba, minha Cidade de Ferro. Havia pedido a Finako que trabalhasse nisso para recuperar os nosso homens desmembrados em batalha, não imaginava que viria a servir para mim. Este novo braço simboliza esta nova fase que vamos passar por agora, na reconstrução da cidade, assim como o meu antigo braço significou muito para mim no início da construção do meu sonho.
Os tempos são diferentes hoje, posso dizer que Ashitaka tem muita importância nisso e, não por acaso, garanti a ele um cargo relevante nesta cidade. Sinceramente, odeio seus encontros noturnos com a garota loba, porém tolero, visto que devo minha vida a ele. Desde que o vi pela primeira vez, percebi que esse jovem tinha futuro e hoje vejo que tudo que ele fez por aqui foi pelo bem comum da minha cidade e da natureza (apesar que ainda considero esta segunda parte como inimiga).
Sendo alguém importante e que conquistou respeito de todos por mérito próprio, acho que ele deva saber como tudo por aqui começou. O convoquei para uma reunião particular em meu jardim ao fim da tarde e estou pronta para revelar a ele minhas origens e motivações por trás de tudo o que construi nesse lugar.


De origem nada nobre
Sem família e ainda pobre
Pude mostrar meu valor
Trabalhando com vigor


Era o começo de uma manhã, o comercio logo abriria na capital, quando uma moça, escondida na lateral de uma loja, foi acordada com um balde de água na cara e gritos:
— Saia da parede da minha loja! Vai espantar meus clientes, garota imunda!
Sem argumentos ou outra opção, a moça saiu dali e entrou no beco mais próximo, onde tentou torcer suas roupas sem muito sucesso. Não ficou tão brava pois já era hora de acordar mesmo, apesar daquele banho vestida ter sido desnecessário. Era hora de se dirigir a ferraria, onde ela auxiliava um velho ferreiro chamado Ótizi a troco de uns trocados, o suficiente para sobreviver. Se não valia a pena trabalhar ali pelo dinheiro, pelo menos ela conseguiu muito conhecimento sobre manuseio de metais ali.
— Eboshi, o que aconteceu com você? Pare de molhar o chão do meu estabelecimento.
— Desculpe-me senhor, jogaram em mim um balde de água agora a pouco e não tenho outras roupas além desta.
— Você não pode trabalhar desta forma. Além de minhas roupas, que devem lhe ficar muito largas, tenho apenas roupas de meu filho, de quando era pequeno, vai ter que usar essas. Vá na sala ao lado e pegue-as dentro do baú.
Ela foi, viu que as roupas iriam lhe ficar bem justas, apesar de lhe servirem, de certa forma.
— Vou fechar a porta apenas para me trocar, ok?
— Sem problema.
Logo após ela fechar a porta, o velho se dirigiu a um quadro da mesma parede, o inclinou, revelando um furo passante e pôs-se a olhar. O corpo da moça ainda não era completamente maduro ainda, porém, ainda era belo o bastante para ele se excitar com isso. Além disso, ele não pode deixar de reparar no cordão que ela carregava em seu pescoço, era bem simples de corda, porém, carregava uma esfera transparente, parecia ser de vidro ou cristal. Terminando de se vestir, ela se virou para voltar e este foi o gatilho para ele rapidamente colocar o quadro no lugar e voltar ao seu posto inicial, voltando a trabalhar.
— Pode por as roupas no varal nos fundos e vir trabalhar.
Ao longo do dia, o velho não tirava os olhos dela, as roupas justas realçaram as curvas que lhe surgiram a não tanto tempo atrás, quando ela iniciou seu trabalho alí, há quase dois anos, ainda tinha um corpo de criança.
— Vou ter que sair, comprar algumas coisas. Apenas continue seu trabalho enquanto eu estiver fora.
Como se ela fosse mesmo escutar o que o velho dizia, sempre que ele saía, ela parava para resolver seu projetos pessoais. Havia forjado, fora da presença dele, um instrumento peculiar que estava em seus retoques finais, neste mesmo dia ela iria terminar. Além disso, no mesmo canto escondido em que guardava este projeto, também estava um punhado de pólvora que um estrangeiro havia levado para vender na cidade, porém parou pela falta de sucesso no negócio e, por acaso, deixou alguns pequenos sacos para trás.
Ela planejava que aquilo se tornasse a rota de fuga desta vida miserável, vendendo a ideia a alguém rico. Mesmo tendo perdido seus pais para um deus animal da floresta durante uma viagem e sua avó, que a criou, tendo falecido há 2 anos, ela ainda tinha chance de ter uma vida boa se esforçando para isso. Sua inteligência sempre se destacou entre as outras crianças de sua idade, havia até mesmo aprendido a fazer contas e ler sozinha, não havia motivos para ela deixar as circunstâncias da vida a guiarem sem rumo.
Logo que ela terminou seu projeto, o escondeu novamente e voltou ao trabalho. Não demorou muito para o velho Ótizi voltar com algumas mercadorias, em destaque um belo pedaço de carne, e um grande sorriso no rosto. Eboshi achou estranho, era difícil ver aquele homem sorrindo. Em meio ao trabalho, ele soltou uma frase bem estranha:
—Mocinha, quando você veio me procurar era praticamente uma criança perdida que só tinha trabalho bruto a oferecer, agora você cresceu em várias partes e seu corpo logo lhe trará “muito trabalho” hahaha.
Ela preferiu ignorá-lo e continuar trabalhando como se não tivesse ouvido nada, essa prática era bem comum vindo dela, porém, ao contrário das outras vezes, o que o velho disse ecoou em sua mente, a perturbando de certa forma. Ela temia que, um dia, sua única escolha fosse usar a “saída de emergência que carregava em seu pescoço, um presente do leito de morte de sua avó, dado com o aviso de quebrar aquilo em sua boca apenas em último caso.
No dia seguinte, já voltando a usar suas roupas normais que haviam secado, Eboshi segue para seu trabalho, porém, ao entrar, logo a porta se fecha e um homem entra na frente dela. O velho, acompanhado de mais um homem, diz:
— Garota, esqueça seus dias dormindo nas ruas e passando fome, estes homens vão te levar para um novo trabalho.
Então é isso que o velho quis dizer no dia anterior! Ela já sabia quem era aqueles homens, eles eram os patrões da sua avó, tinham contratos de mulheres que trabalhavam em prostíbulos daquela região. Isso não podia estar acontecendo, ela teria o mesmo destino de sua avó? Logo os homens a levaram dali para uma casa não muito longe e a trancaram em um quarto. Por mais que Eboshi quisesse ser forte, era inevitável que as lágrimas escorressem de seu rosto. Seus planos de crescer na vida seriam arruinados alí, ela sabia que não tinha uma forma de fugir quando tudo começasse. Logo alguém fala por trás da porta do quarto ao qual ela foi trancada:
— Está com sorte, novata, já temos um cliente interessado em você!
Não, não, não! É o fim, não tinha mais jeito, chegou a hora da “saída de emergência”. Eboshi pega a bola transparente que ficava em seu colar, coloca na boca e quebra com os próprios dentes, dor e agonia vem a sua mente quando aquela casca penetra em sua gengiva e língua, gerando pequenos cortes. Porém, isso não importava, logo ela iria encontrar sua família… Ou talvez não.
O líquido praticamente sumiu, como se tivesse sido absorvido pelo seu corpo instantâneamente ou evaporado. Com isso, ela cospe os pedaços de vidro da bola e, junto com eles, um pequeno papel. Se aproximando da lanterna que iluminava seu quarto, foi possível ver no papel: “Ninguém poderá te ver até o nascer/pôr do sol. Fuja! Viva!”. A princípio ela ficou sem compreender direito aquilo, mas ao olhar para suas mãos, percebeu que não as via, estava invisível!
Não demorou muito para abrirem a porta, dois homens, um dos que haviam comprado a garota para os serviços e o tal cliente, era um caçador da região.
— Fico feliz que aquele velho ferreiro tenha cumprido sua parte, estava de olho nessa mocinha há um bom tempo, irei me satisfazer hoje!
Ao entrarem no quarto, reparam na ausência da garota.
— Não adianta se esconder menina, vamos te achar de qualquer jeito, pare de dificultar as coisas.
Então, eles pararam para procurar entre os móveis do quarto, a porta se fecha e tranca repentinamente. Ambos correm na direção dela e tentam, com sucesso, após algumas tentativas, derrubá-la. Apesar dos passos de alguém correndo, eles não veem ninguém por ali. O corredor era longo, não tinha como ela ter fugido tão rápido, mesmo assim eles seguem os sons dos passos, continuam sem enxergar quem reproduzia aquele som. Logo, param de ouvir os passos, não conseguiram encontrar a moça.
Aproveitando de sua invisibilidade, Eboshi resolve que tentará um plano ousado. Para começar, ela vai até a ferraria, bate a porta da frente e, enquanto o velho atende, entra sorrateiramente pela janela, pega o seu artefato escondido. Foi bem fácil, o velho era lerdo e meio surdo. Saindo de lá, ela segue o seu rumo até o palácio do imperador para invadí-lo. Tudo foi bem fácil contando com sua invisibilidade que aderia até as suas roupas e objetos que mantinha junto ao seu corpo.
Ninguém percebeu sua entrada, por sorte ela conseguiu chegar antes do pôr do sol, mesmo o palácio sendo longe de onde estava antes. Ficou escondida em um dos aposentos próximos da sala do trono até o efeito daquele líquido mágico acabar e aproveitou para preparar sua invenção. Então, em um momento oportuno, ela invadiu a sala do trono, onde o imperador estava a negociar com alguns burocratas e pôs-se a apontar aquele objeto metálico ao imperador. Obviamente, alguns guardas foram em sua direção, ela não perdeu tempo em se pronunciar:
— Não cheguem perto de mim, isso em minhas mãos pode matar o imperador quando eu quiser!
Os burocratas se afastaram do imperador por medo, porém os guardas não pararam de correr em sua direção até que receberam um sinal de mãos feito pelo imperador para tal. Ninguém tinha ideia como uma pessoa com roupas plebéias havia parado dentro do palácio, mas não viam outra opção além de ouví-la, já que o objeto em suas mãos era desconhecido.
— Esta arma que tenho em mãos atira ferro como um arco atira flechas, porém com uma força muito maior e letal. Venho aqui por que o destino me deu uma chance de mostrar meu potencial e quero que vocês me escutem. Posso fazer muito mais de onde isso veio e lhes oferecer em troca de uma vida boa com muitos bens.
— Admiro sua coragem, mocinha! - Elogiou o imperador - Me diga, qual é o seu nome?
— É Eboshi.
— Pois bem, Eboshi, você parece bem inteligente e sabe que, mesmo que me mate, não sairá daqui viva. Então, o que acha de fazer uma demonstração dessa coisa que trás em suas mãos em meu jardim? Após isso, podemos negociar seu futuro.
No jardim, Eboshi tentou disparar com sua criação, apesar da bola de ferro voar alguns metros, não parecia algo letal, além do aquecimento da arma ter lhe causado uma queimadura em seu braço direito. Mais tarde, esta queimadura deixaria uma marca semelhante a cabeça de um lobo.
— Apesar de não cumprir suas palavra na sala do trono, seu projeto parece promissor e sua habilidade no manuseio de ferro é perceptível. Sua aparição com este instrumento tão peculiar veio bem a calhar. Acabei de discutir com estes homens a aquisição de uma pequena vila de ferro próxima a floresta dos deuses animais, o que acha de me representar naquele lugar?
Negar aquela oferta estava longe de ser uma opção, então, logo pela manhã, Eboshi partiu viagem para aquela terra prometida. Ao executar seu plano, obviamente que este não era o resultado esperado, mas sem dúvida era também um ótimo rumo para sua vida. Lá ela cresceu e conquistou a confiança de muitas pessoas, até o dia em que conseguiu chegar ao topo da hierarquia do lugar e passou a ser conhecida como Lady Eboshi. Com ela no comando, a cidade prosperou muito, e o resto vocês já sabem.


Neste mundo injusto
É fácil ser vítima
Dar a volta por cima
Requer um grande custo


Como mudei desde aquela época! Agora, nesta nova fase de reconstrução da minha cidade, sei que posso contar com todos estes amigo que conquistei ao longo do tempo, incluindo o jovem de uma terra distante que acabou de ouvir a minha história. Logo teremos uma nova cidade, meus princípios serão mantidos em diversos pontos, mas estou certa que Ashitaka não deixará que nossa relação com a natureza seja a mesma, principalmente depois que tiver seus “filhos lobinhos”. A mãe provavelmente cuidará deles na floresta e o jovem fará de tudo para protegê-los… Espero que ele não seja um incômodo muito grande para mim, posso ser grata pelo que fez até agora, mas não posso deixá-lo impedir meu progresso. Assim, começa um novo capítulo na história daquela que chamam de Lady de Ferro!

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Luto próprio

DESAFIO MEMÓRIA DOS MORTOS • GRUPO CANETA TINTEIRO

Hum… Onde estou? - acordo no chão e me levanto - Isso no chão é sangue? E seguindo a poça tem alguém, não consigo ver bem, está muito escuro, apenas o fogo que vem dos destroços do carro é o que ilumina o ambiente. Esse carro parece ser o meu, me envolvi em um acidente? Preciso socorrer aquela pessoa, onde está o meu celular? Aliás, onde estão minhas roupas? Espera… Essa pessoa no chão, sou eu, estou morto? Não, não pode ser, tenho muito para viver, por que alguém iria morrer tão cedo? Nunca fiz nada de errado, eu não, por quê?!

Parece que você deu azar, ele já descobriu que está morto. Normalmente, é bom que nós demos esta informação para eles, caso contrário acabam entrando em luto pela própria morte e isso normalmente não acaba bem. Quando o luto já se iniciou, aconselho que ceife a alma o quanto antes, caso ela pare em uma das fases de forma muito intensa, pode acabar corrompendo seu espírito e se juntando com algum demônio em busca de satisfação. Essa é a sua primeira missão, a que irá definir se irá continuar conosco, falhas não serão toleradas. Boa sorte e traga bons resultados.

Ainda me pergunto o porquê me juntei aos assistentes do Ceifador Sinistro. Ainda acho que alguém que um dia já foi (e ainda é para alguns) considerado um deus deveria conseguir cuidar de todas as mortes sozinho. Enfim, acabei de chegar em meio as sombras, ele não deve ter me notado ainda, poderei ceifá-lo sem que nem ao menos perceba… Ei! Ele se virou, parece ter me visto e agora está correndo, preciso pegá-lo! Que velocidade! Não posso perdê-lo de vista, se eu falhar creio que irei para o inferno, ou pelo menos esse era o trato que aquele cara fez comigo. Esse fantasma louco está destruindo diversas coisa no caminho, derrubando-as no chão, não sei se ele tem noção do que está fazendo, mas sem dúvida está com muita raiva! Eita, essa é a fase mais perigosa, se ele parar nela sem dúvida fará um grande estrago como um poltergeist. Tenho que tirá-lo agora dessa fase, o único jeito é avançar. “Escuta, você está dificultando as coisas, vamos negociar: se você parar para conversar eu não te ceifo agora, deixo você se despedir de alguém que queira, que tal?” - Gritei. De repente, ele sumiu de minha frente, deu ruim.

Ele está demorando muito, será que aconteceu algo? Sei que meu irmão não me deixaria na mão, se ele disse que viria me buscar ele vem. Vou orar aqui, o local está calmo, se algo aconteceu meu anjo poderá ajuda. Ele está descendo de seu voo aqui, trouxe uma alma consigo. Não me diga que… Entendi, vou ter que cuidar disso. “Não se preocupe comigo, ficarei bem porque este ser iluminado está sempre junto a mim. Eu sei que você ainda nos quer por perto, mas não adianta, tem que seguir o seu rumo, ficar aqui só lhe trará problemas. Prometer ser uma fantasma bom não adianta de nada, uma hora ou outra os espíritos perdidos se corrompem. Chega de chorar, se lamentar só vai piorar as coisas, não há mais o que fazer. Sei que vocês iriam se casar agora que concluiu a faculdade, mas saiba que saberemos lidar com isso. Um dia também estaremos lá contigo irmão, apenas espere por nós. Olha só, aquele que te levará está chegando aqui, aceite ir com ele, por mim, por todos que você ama.” Ele então se dispôs a ir embora. Espere, esse ceifador… “É bom vê-lo de novo, senti saudades”.

sábado, 28 de outubro de 2017

Um despertar mortal

DESAFIO MODUS MALEFICARUM • GRUPO CANETA TINTEIRO



Aviso: o texto a seguir contém cenas fortes, recomendo apenas para maiores de 15 anos. Leia por sua própria conta e risco.






Nos últimos dias tive uma desagradável surpresa: minha melhor amiga fugiu de nossa casa, um orfanato. Porém, considerando os últimos eventos, eu a compreendo e digo até que faria o mesmo em seu lugar. Ela sempre foi meio estranha, dizia ver criaturas mágicas e fantasmas, porém os acontecimentos da última semana passaram dos limites! A carta que encontrei em meu quarto esta manhã conta bem o que aconteceu pelo ponto de vista dela. Apenas leiam, com certeza irão entendê-la também.


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Quando uma magia oculta se revela
Sem controle, resta apenas mazela
Uma vida sofrida se rebela
Contra quem gerou todo o sofrer dela

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“Olá Cat,
Fui embora hoje, você acima de todos sabe os meus motivos, mas senti que lhe devia uma explicação dessas coisas bizarras que aconteceram. Todas essas coisas ruins são sim culpa minha, não são coisas que eu faria por querer, mas aconteceram por conta de minha ira interna que se expandiu para o mundo externo. Fui isso que ela, a bruxa, me explicou.
Eu estava perdida, não sei guiar o meu poder, futuramente poderiam acontecer coisas muito piores se ela não tivesse aparecido. A primeira manifestação você viu pessoalmente, mesmo assim irei comentar sobre ele, caso menos grave. Até chegar àquela manhã da igreja, aconteceram outras coisas, coisas que não te contei e que você deve ter ouvido boatos sobre.
Enfim, para começar, nunca fui bem tratada por ninguém por aqui. Os funcionários sempre nos maltrataram, não é novidade, mas as outras crianças ,que poderiam ser minha amigas, simplesmente me ignoravam ou faziam desfeitas. Me achavam estranha por “falar sozinha” (você  sabe, hoje tenho certeza que não sou louca, os gnomos, fadas e outros serzinho existem e são minhas bússolas do saber).
No geral, preferiam me evitar, mas algumas meninas, como a Joana, se exaltavam comigo e me xingavam de vez em quando. Pelas costas, já ouvi ela lhe dizendo “Você sabe que essa estranha não é flor que se cheire, por por que ainda anda com ela?!”, você ficou quieta e depois correu para o dormitório, sorte que ela não te alcançou. Fique tranquila, sei que você é uma pessoa muito boa e teve medo do que ela te faria com qualquer resposta que desse. Também ouvi outras pessoas murmurando mais coisas sobre mim, fico extremamente feliz que, mesmo com tudo isso, você tenha ficado ao meu lado!
Então, chegou aquele dia, pela manhã uma das filhas do dono do orfanato, dona Susana Cunha Buus, me levou para a sala do padre Bonifácio. Por mais que desta vez a desculpa para eu estar lá fosse a realização das confissões para a primeira comunhão do dia seguinte, não era a primeira vez que eu ficava sozinha com ele naquela sala. Era horrível sempre que me mandavam para lá, ele me tocava, principalmente nos seios e genitália. Por vezes me mandava tocá-lo também, até soltar um xixi gosmento e branco. Eu odiava ele profundamente, não queria fazer aquilo, mas suas ameaças não me davam outra escolha. Mesmo uma vez que tentei fugir, dona Susana me pegou, me bateu muito e me devolveu no quarto com ele. Ela era cúmplice. Sei que o mesmo acontecia com outras crianças, principalmente as meninas mais quietas, espero que nunca tenha acontecido contigo.
Desta vez, não foi bem como das últimas vezes, foi realmente uma confição, por mais que ele tenha me tocado um pouco antes de eu sair. Depois disso, fui levada para sala de aula por aquela vadia (não sei bem o que significa, mas os gnomos sempre chamam ela assim), ela disse que estava matando aula! Além de estar fazendo coisas contra minha vontade, ainda levei um esporro da professora Maria. Ela sempre foi boazinha conosco, uma das poucas por aqui que faziam isto, as repreensões dela era com boas intenções. O pior mesmo é que, ao olhar dos outros alunos, este meu atraso era visto como culpa minha e piorava minha situação como “a esquisita”, eu era vista como uma garota má agora.
Você deve lembrar  bem desse dia, você me deu um dos caramelos que a professora deu aos alunos e eu não recebi por chegar atrasada. Infelizmente, não fomos discretas o suficiente nisso e logo a Joana com um grupo de garotas chegou:
-- Catarina, você não deveria alimentar ratos de porão, ainda mais os que conversam com as paredes.- Joana disse isso arrancando o caramelo de minha mão.
Eu não sou uma garota má e hoje sei que nem sequer louca eu era. Eu simplesmente tenho um dom que a maioria das pessoas não compreende e, para piorar, fui brinquedo daqueles adultos maus. Tentei pedir ajuda, nem sequer as freiras me escutaram, todos achavam que eu era louca, que o que dizia eram delírios de minha mente. Não estava aguentando mais…
-- Apenas garotas boas merecem isto! - disse Joana colocando o caramelo que tomou de mim na boca.
Neste momento minha ira chegou ao extremo! Apenas queime! Eu jurava que uma das fadas que sempre passeiam no jardim em que estávamos sussurrou isso em meus ouvidos. As palavras da fadinha de vestido negro ecooaram em minha cabeça, como se estivesse hipnotizada. Quando dei por mim, vi o caramelo no chão em chamas, verdadeira fogueira em miniatura, e Joana se retorcia no chão com suas mãos tapando a boca. Isso foi muito assustador, não só para vocês que assistiram a cena, para mim também.
Ao ver isso corri, queria chegar o quanto antes na minha cama, me embrulhar no cobertor e fingir que isso nunca aconteceu, pena que tropecei em algo e caí bem aos pés da diretora Joaquina. Ela estava indo ver o que estava acontecendo no pátio e, ao acaso, me pegou “em fuga”.
-- Moçinha, o que faz correndo no pátio? Isso não é o comportamento de uma criança educada!
-- Mil perdões senhora Carlota, eu corri por medo do que acabou de acontecer!
-- Aposto que não há o que temer, venha comigo.
Nós chegamos até onde Joana ainda estava. Neste momento socorros já estavam chegando, não te vi por lá nesta hora. Ao lado da minifogueira, a menina ainda estava no chão, porém agora parada, deitada de lado, chorando e berrando o máximo que conseguia através das mãos que tapavam a sua boca. Ao me verem, as amigas dela disseram que não sabiam o que fiz, mas sem dúvida eu era a culpada. Com isso, a diretora me levou a sala dela para conversarmos.
-- Olha garota, não há como provar que aquilo foi culpa sua, porém não pense que sairá impune. Digamos que, por estar correndo no pátio, te darei como punição uma tarde de trabalho na cozinha. Seja agradecida por isso, que estou sendo bem boazinha, se meu marido estivesse por aqui, sem dúvida seria pior para você.
Logo que saí da sala, Susana estava a porta e disse:
-- Mãe, não precisa se preocupar, levarei a garota para a senhora.
-- Ok, sei da sua “amizade” com o cozinheiro, não demore muito por lá ou irei te buscar pela orelha.
-- Não se preocupe mãe, se depender dele será mais rápido do que você imagina.
Inicialmente não entendi nada dessa conversa, depois fez sentido. Ao chegar lá vi pela primeira vez o cozinheiro, parecia ser o único homem jovem que já havia visto no orfanato. Chegando lá, ela o cumprimentou com um beijo na bochecha (o que já não é algo muito comum de se ver), mas juro que vi ela dar também um leve lambida. Daí me mandaram para a dispensa, havia várias caixas com alimentos, prateleiras e uma longa escada. Meu trabalho alí era pegar as coisas e colocar nas prateleiras… Elas eram bem altas, me deu um frio na espinha só de pensar em caso caísse do degrau mais alto.
Não é como se eu tivesse alguma escolha, mas comecei pelas prateleiras mais baixas para ir tomando coragem. Quando estava começando a segunda prateleira, comecei a ouvir a voz da Susana. Eram gritos? Mas não é como se ela estivesse sentindo dor ou algo do tipo, era diferente. Então, resolvi ir sorrateiramente até a cozinha para ver o que estava acontecendo.
Lá vi o cozinheiro com suas calças abaixadas, Suasana estava logo a frente dele. Ela estava inclinada com o bumbum nu (seu vestido estava levantado) em direção a barriga dele, em contraparte, ele não parava de balançar a cintura para frente e para trás acertando-a. Para aguentar as batidas, ela apoiava suas mãos contra a parede. Seria aquilo o que ouvi uma vez ou outra as meninas mais velhas chamarem de sexo ou transa?
Independente disso, comecei a sentir uma imensa raiva da Susana, ela é um demônio que faz os homens agirem de maneira errada. Essa raiva foi crescendo e, observando a cozinha, vi um ratinho passar de perto deles para um buraco na parede perto de mim. Pouco antes de entrar, este ratinho se levantou em duas patas e retirou a pele de sua cabeça como se fosse um capuz, revelando-se como um duende vestido de rato. Ele olhou nos meus olhos e disse:
-- Esvazie sua raiva… Esvazie aquele caldeirão!
Novamente, entrei em transe com estas palavras e acordei com gritos ensurdecedores daqueles dois no chão, suas peles se deslocavam do corpo com a água quente que caiu do caldeirão, era horrível ver o sangue que escorria da carne viva se misturar com as verduras semicozidas. Não parei muito tempo vendo essa cena, corri de volta para a dispensa e me sentei, segurando as pernas, atrás da escada. Não conseguia controlar o choro, mal conseguia abrir os olhos.
Pouco tempo depois, a diretora chegou, parecia muito chocada ao ver aquela cena. Obviamente não ficou ali parada, voltou para pedir socorros. Quando os funcionários chegaram para socorrer, ela retornou e começou a me procurar, não demorou muito a me encontrar e puxar pelo braço, apertando muito.
-- Sua pirralha! O que fez com minha filha?!
Não conseguia responder, o choro só se tornou mais intenso com a situação e a dor que eu sentia do aperto no braço e as unhas perfurando minha carne.
-- Engole esse choro e me responda!!! -  gritou enquanto me arremessa em direção a prateleira mais baixa.
Depois de um pequeno momento de silêncio me recuperei, levantei disse em meio a soluços e lágrimas:
-- Eu não fiz nada, estava na dispensa trabalhando e quando vi eles assim voltei para cá, não consigo mais parar de chorar depois que vi aquilo. Não consegui pedir ajuda, sei que sou inútil.
-- Não consigo acreditar em você, porém também não posso provar nado do que fez. Contudo, posso te castigar da mesma forma… Vai passar a noite no quarto solitário! - por mais que eu fique triste pelos castigos mesmo sem ter culpa de forma direta, sempre senti que ela não é uma pessoa má como seu marido e sua filha. - Amanhã será sua primeira eucaristia, certo? Espero que possa fazer um exame de consciência e, por fim, receber o nosso Senhor Cristo que irá purificar o seu coração.
Depois disso, fui levado para esse tal quarto, que no fim das contas, para mim, não foi solitário. Encontrei lá uma kikimora (parecia uma velha senhora de um metro de altura vestida com panos que pareciam bem velhos), ela mora na cozinha e viu o que aconteceu comigo. Sabendo que eu viria para cá, quis me encontrar para conversarmos. Contei a ela o que aconteceu de estranho ultimamente e ela me disse que conhecia alguém que poderia me ajudar. Depois disso, ela saiu de lá se esgueirando magicamente pela fresta da porta. Não demorou muito para eu cair no sono quando fiquei só.
Em meu sono, nessa noite, sonhei com uma senhora de aparência simpática, ela vestia um sobretudo roxo por cima de suas roupas e um chapéu pontudo da mesma cor, cobrindo seus cabelos prateados. Alí já suspeitei que fosse uma bruxa, mas era bem bonita comparada às das histórias. Ela me disse:
-- Ághata, não se assuste com os recentes acontecimentos, são bem comuns na vida de gente como nós. Apenas se acalme e viva normalmente o próximo dia, logo após o próximo pôr do sol lhe farei uma visita pessoalmente.
Então acordei com a porta do quarto se abrindo e uma forte luz clareando o lugar que antes era puro breu.
-- Vá para seu quarto e se arrume, logo começará a missa, você não pode se atrasar! - era a diretora, apenas segui suas ordens.
A igreja parecia estar mais bonita que o comum neste dia, estava bem enfeitada. Não pude deixar de reparar assim que entramos que o suporte de adoração estava no altar. Era aquele grande, feito de ouro, na sua extremidade superior estava o pão dentro de um recipiente de vidro redondo e, em volta dele, várias pontas, como se fossem raios de luz. Dentre estas pontas, três maiores principais que formam uma cruz junto a haste que segura esta parte superior. Não iria ter adoração ao santíssimo neste dia, mas sei que o pessoal do orfanato gostava de ostentar este suporte em datas especiais, afinal ele era de ouro maciço e pedras preciosas, muito caro.
Depois da longa cerimônia, finalmente chegou a hora da eucaristia. As crianças que iriam fazer a primeira comunhão neste dia (que não era seu caso, por isso ficou sentada) tiveram que fazer uma fila em direção ao Padre Bonifácio, eu era a quinta ou sexta, se não me engano. Quando minha vez chegou, vi um leve sorriso malicioso no rosto do padre. Ao colocar o pão em minha boa, ele aproveitou para esfregar seus dedos em minha língua, me senti muito mal por isso e recuei um passos para trás, esbarrando em uma menina, ao erguer meu rosto para olhar o padre de volta, a raiva me consumiu novamente.
De trás do pescoço dele, saiu  um pequeno diabrete que se sentou em seu ombro. Esse serzinho me disse: “ Vai rrrracharrrr, vai sangrrrrarrrr, vai morrrrerrrr”. Não! De novo não! E dessa vez foi bem pior, você sabe bem disso. Não entrei em transe, por isso vi bem o suporte para a adoração girar um quarto de volta e cair na cabeça dele. O sangue jorrou para toda parte já que sua cabeça praticamente partiu em duas. Fiquei toda suja, ainda mais por ele ter caído em minha direção, desviei de seu corpo por pouco.
Foi então que olhei para trás, as outras crianças da fila já haviam corrido para os bancos, junto com as outras pessoas, menos Sahra, ela ficou paralisada com o acontecido. Pessoas começaram a correr para sair da igreja, alguns vomitaram mesmo onde estavam, outros não paravam de gritar, uma verdadeira salada de reações. Porém, em meio a confusão, todos conseguiram ouvir com clareza o grito da diretora:
-- Agora não restam mais dúvidas, esta garota é uma bruxa!
Ao invés de melhorar, isto apenas piorou o pânico ali instalado. Neste momento, tentei correr para fora também, mas o dono do orfanato, o Senhor Buus me agarrou em um “abraço” muito forte e sufocante.
-- Chegou a hora de pagar pelo que fez com minha filha, ela está quase morta agora!
Eu quase desmaiei por falta de ar alí, até que ele soltou pelas palavras que ouviu de sua esposa.
-- Querido, não a mate aqui, agora, com suas mãos. Ela merece sofrer muito mais,  ao anoitecer será queimada na fogueira, como toda bruxa deve ser!
Me levaram de volta ao quarto solitário, sendo que desta vez fiquei solitária mesmo por horas que pareciam eternas. Alguém abriu a porta, eu já estava preparada para meu destino quando vi a senhora do meu sonho alí! Não sabia o que sentir quando a vi, mas conseguia perceber uma energia boa vindo dela.
-- Não queria que as coisas chegassem a este ponto contigo, cheguei tarde. Vamos embora, ficar aqui não é mais uma opção para você. Não temos muito tempo até eles voltarem a andar.
Só fui entender estas últimas palavras quando saímos do quarto. Vi pessoas no corredor, pareciam estar de vigia, porém estavam paralisadas como estátuas. Saímos depressa e, ao chegar do lado de fora, uma montaria nos esperava. Não conhecia aquele ser, mas era uma espécie de cavalo sem cabeça, ao qual do pescoço saiam chamas. Cavalgamos por bastante tempo até chegar aqui, na casa da bruxa. Ainda não sei muito sobre ela, nem sequer o seu nome, mas sei que posso confiar, nunca me senti tão bem em um lugar como este que estou.
Depois que chegamos, disse que tinha uma amiga a qual não tive a chance de me despedir (obviamente, você). Então, ela pediu a um amigo que escrevesse minhas palavras em uma carta. Também me garantiu que esta mensagem, sem dúvida, lhe seria entregue. Fiquei muito feliz por isso! Por fim, agradeço sua amizade e apoio enquanto estive por aí, não sei se ainda nos veremos, espero que sim.


No lugar de um adeus, prefiro lhe dizer um até logo.
De sua bruxinha amiga, Ághata.”


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Depois de, sem querer, se vingar
A garota encontrou o seu lugar
Que não era apenas para morar,
Era para poder chamar de lar


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Espero mesmo encontrá-la um dia, porém longe deste orfanato, já basta o que passamos aqui, não iremos querer relembrar. Sentirei falta dela até lá, os dias no orfanato serão bem solitários. De tudo que aconteceu, o que aprendi é que criaturas mágicas e bruxas realmente existem, acredite neles. Além disso, apesar das coisas ruins que aconteceram, sei que Ághata não é uma pessoa má, tudo foi por conta de seus sofrimentos e tormentos. Use o que aprendeu aqui em sua vida, quem sabe, depois disso, ela não seja um pouco mais mágica!